“A medida do amor é amar sem medida” – A visão de Santo Agostinho sobre o amor verdadeiro

Santo Agostinho

Quem foi Santo Agostinho?

Foi autor de obras monumentais como “Confissões”, uma autobiografia espiritual escrita em forma de oração, e “A Cidade de Deus”, um tratado teológico e filosófico que influenciou profundamente o pensamento cristão e político ocidental. Nessas obras, Agostinho explora temas centrais como o tempo, a memória, a alma, a vontade, o livre-arbítrio, o pecado original e, acima de tudo, o amor — força fundamental que move o ser humano e dá sentido à existência.

Sua filosofia do amor está enraizada na convicção de que todo ser humano foi criado para amar e que só encontrará a verdadeira felicidade quando seu amor estiver ordenado corretamente — tendo Deus como o fim último. Para Agostinho, o amor é o fio condutor que une todas as escolhas humanas, para o bem ou para o mal. Tudo depende de como se ama, quem se ama e com que intensidade se ama.

A célebre frase “A medida do amor é amar sem medida” sintetiza sua visão sobre o amor autêntico: um amor que não calcula, não impõe limites e não busca retorno — mas se entrega por inteiro, de modo generoso, incondicional e eterno.

O que significa “A medida do amor é amar sem medida”?

Essa frase de Santo Agostinho parece, à primeira vista, um paradoxo lógico. Como algo pode ter como medida a ausência de medida? No entanto, é justamente nesse aparente paradoxo que reside a profundidade de sua mensagem: o amor verdadeiro não é mensurável em termos humanos.

Para Agostinho, o amor genuíno não pode ser contido por cálculos, contratos, trocas ou expectativas. Quando o amor é usado como moeda de troca — “dou isso para receber aquilo” — ele se corrompe. O amor que se baseia em interesses ou retornos não é amor verdadeiro, mas apenas uma simulação de afeto. O amor autêntico é aquele que transcende os critérios humanos de utilidade e reciprocidade.

Amar de verdade, segundo o pensamento agostiniano, é transbordar. É oferecer-se ao outro — a Deus ou ao próximo — com total generosidade, mesmo diante da dor, da ingratidão, da rejeição ou da solidão. É manter o amor mesmo quando ele não é correspondido, pois sua raiz não está no outro, mas em Deus.

Esse amor não se resume a sentimentos passageiros ou emoções intensas. Para Agostinho, amar é um ato da vontade iluminado pela graça divina. Amar sem medida é, portanto, amar com liberdade interior, com desprendimento, com firmeza — e não com apego, ciúme ou necessidade.

Esse amor é, ao mesmo tempo, intenso e equilibrado, exigente e leve. Ele é fruto da maturidade espiritual, que entende que o amor, quanto mais autêntico, menos depende da resposta do outro. O verdadeiro amor é criador, pois é capaz de amar até quem não é amável. Ele é fiel, mesmo quando tudo convida à desistência.

Amor e entrega: a essência do amor cristão

No contexto cristão, o amor que Santo Agostinho prega é o amor ágape — termo grego que designa o amor incondicional, sacrificial, que se doa sem esperar nada em troca. Esse é o amor com que Deus ama a humanidade, e é o amor que os cristãos são chamados a imitar.

Esse amor se expressa não apenas em palavras ou sentimentos, mas em ações concretas: acolher o necessitado, perdoar o inimigo, socorrer o doente, visitar o prisioneiro, consolar o que sofre. Amar sem medida é amar com atos, com obras de misericórdia, com dedicação concreta ao bem do outro.

Agostinho vê em Cristo o modelo supremo desse amor. Na cruz, Jesus nos amou até o fim, sem medida, sem restrições. Por isso, o amor cristão verdadeiro deve ser uma participação nesse mistério: “Amar como Ele nos amou.”

Além disso, para Agostinho, esse amor não se restringe ao âmbito religioso. Ele deve transbordar para a vida social, para o cuidado com os pobres, com os marginalizados, com os abandonados. O amor sem medida é também compromisso com a justiça, com a paz e com a transformação do mundo.

No seu livro “Confissões”, Agostinho escreve: “Fizeste-nos para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti.” Essa inquietação é o desejo profundo de amar e ser amado, que só encontra repouso quando se une ao amor sem medida de Deus.

A desordem dos amores: o problema central da alma humana

Agostinho desenvolveu uma ideia central para sua filosofia: a ordem do amor (ordo amoris). Para ele, o pecado não consiste apenas em fazer o mal, mas principalmente em amar de forma desordenada. Ou seja, não é errado amar as criaturas, mas é errado amar as criaturas mais do que o Criador.

O ser humano, criado para amar a Deus acima de tudo, muitas vezes direciona seu amor para bens transitórios, como dinheiro, poder, prazer, fama, beleza, ideologias. Isso gera uma desordem interna: o coração humano fica dividido, insatisfeito, ansioso, escravizado.

Agostinho ensina que devemos amar tudo aquilo que é bom — mas na medida certa, e sempre subordinando tudo ao amor a Deus. Amar sem medida, nesse sentido, não significa amar qualquer coisa de forma exagerada, mas sim amar o que é eterno com intensidade total. Amar a Deus com todo o coração, alma, mente e forças. E amar o próximo em Deus.

Quando os amores estão fora de ordem, criamos ídolos, nos apegamos ao que é passageiro e perdemos o senso da eternidade. O amor desordenado gera sofrimento, orgulho, inveja, competição, rivalidade e desespero. Somente o amor ordenado cura a alma e nos liberta do caos interior.

Assim, o amor sem medida só é possível quando o coração está ordenado. Quando amamos o que é supremo com amor supremo, tudo o mais se encaixa. E é isso que liberta o ser humano: amar corretamente.

Amar sem medida também é um desafio ético

A frase de Santo Agostinho não é apenas uma inspiração mística, mas também um chamado ético profundo. Em um mundo cada vez mais centrado no ego, na autossuficiência, no cálculo frio das relações e no medo de se doar, amar sem medida torna-se um gesto revolucionário e contracultural.

Amar sem medida é perdoar antes de ser perdoado. É escutar sem julgar. É ajudar sem esperar gratidão. É amar quem nos magoou. É agir com bondade quando o mundo age com dureza. É manter o coração aberto quando tudo convida ao fechamento.

Essa forma de amar exige coragem espiritual. Porque amar sem medida é também sofrer sem medida. Mas esse sofrimento não é vazio: ele nos configura a Cristo e nos purifica. Santo Agostinho mostra que o amor maduro não se mede pela intensidade das emoções, mas pela fidelidade ao bem do outro.

Agir com amor desinteressado, em pequenas atitudes do cotidiano, é transformar o mundo de forma silenciosa, mas poderosa. A ética do amor agostiniano começa no interior do ser humano, mas se irradia em todas as suas relações — familiares, sociais, comunitárias e até políticas.

Por que essa frase ainda importa?

Vivemos em uma época em que tudo é medido, avaliado, quantificado. Desde nossas interações sociais até nossos sentimentos mais íntimos são submetidos a métricas: curtidas, seguidores, engajamento, tempo de resposta, retorno emocional. O amor, nesse contexto, muitas vezes se transforma em moeda, em contrato, em estratégia de troca.

Nesse cenário, a frase de Agostinho soa como um grito de liberdade interior. Amar sem medida é recusar-se a transformar o afeto em produto. É acreditar que o amor autêntico não precisa ser retribuído para ser verdadeiro. É compreender que o maior sentido da vida não está no que recebemos, mas no que oferecemos.

Essa ideia, nascida há mais de 1.500 anos, continua viva porque o coração humano continua sedento por um amor que não se esgote, que não se canse, que não abandone. Amar sem medida é também resistir à lógica da pressa, do consumo e da descartabilidade. É lembrar que o ser humano não foi feito para acumular, mas para amar.

E talvez, como dizia Agostinho, só encontremos descanso quando formos capazes de amar assim: com intensidade, com liberdade, com entrega — sem medida.

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