“Há duas palavras que não se podem usar: uma é sempre, outra é nunca” – O cuidado com os absolutos em Saramago

Saramago

Quem foi José Saramago?

Nascido em uma família humilde, Saramago teve uma trajetória marcada por desafios. Trabalhou como serralheiro mecânico, funcionário público e tradutor, antes de se consolidar como escritor. Sua linguagem peculiar — caracterizada por frases longas, pontuação incomum e ausência de travessões para diálogos — não é um capricho estilístico, mas uma estratégia literária para revelar a complexidade e a musicalidade do pensamento humano.

Em meio a tantas frases memoráveis que compõem seu legado, destaca-se uma que, à primeira vista, pode parecer apenas um conselho sobre o uso da linguagem: “Há duas palavras que não se podem usar: uma é sempre, outra é nunca.” Mas, como em toda boa literatura, o sentido vai muito além das palavras.

O perigo das palavras absolutas

Ao alertar sobre o uso de “sempre” e “nunca”, Saramago nos convida a refletir sobre o modo como construímos nossas percepções e julgamentos. Essas palavras são absolutas, rígidas, e carregam um peso que muitas vezes ultrapassa o que gostaríamos de comunicar.

Dizer “você sempre faz isso” ou “você nunca muda” é mais do que uma observação: é uma sentença. É como se estivéssemos congelando o outro em um estado fixo, impedindo qualquer possibilidade de transformação ou nuance. Essa postura impede a escuta e o diálogo, pois transforma comportamentos temporários em identidades permanentes.

O ser humano, no entanto, é mutável por natureza. Estamos em constante aprendizado, movimento, mudança. A vida se dá no intervalo, na exceção, no detalhe. Saramago compreendia isso profundamente — e por isso rejeitava os excessos linguísticos que violentam a complexidade da experiência humana.

Além disso, os absolutos nos afastam da empatia. Quando afirmamos que algo sempre acontece, ou que alguém nunca faz algo, estamos, na verdade, generalizando a partir de episódios isolados, filtrados pela nossa carga emocional do momento. Isso nos impede de ver o outro como ele realmente é — e não como nossa frustração o pinta.

A linguagem como instrumento de opressão ou libertação

Para Saramago, a linguagem é uma arma poderosa. Ela não apenas comunica, mas define, delimita, constrói realidade. As palavras que usamos moldam a forma como pensamos o mundo, os outros e a nós mesmos. Por isso, é fundamental questionar como e por que falamos do jeito que falamos.

O uso acrítico de palavras absolutas contribui para relações autoritárias, injustas e pouco sensíveis. Em vez de escuta, impomos. Em vez de partilha, isolamos. “Sempre” e “nunca” são palavras que muitas vezes aparecem em contextos de acusação, frustração ou julgamento — raramente em momentos de compreensão, carinho ou compaixão.

Saramago nos mostra que a linguagem pode ser libertadora quando utilizada com consciência, criatividade e cuidado. Podemos escolher palavras que incluam, que abram espaço para o outro se expressar, que reconheçam as diferenças, que acolham a imperfeição e a ambiguidade. Assim, a linguagem deixa de ser um instrumento de dominação e se torna um meio de encontro.

A ética da dúvida, da escuta e da flexibilidade

A rejeição de “sempre” e “nunca” não é um mero preciosismo verbal. É uma postura ética, que reconhece a incerteza como parte constitutiva da vida. Saramago sabia que os sistemas fechados — sejam eles políticos, religiosos ou linguísticos — tendem à rigidez, ao dogmatismo, à violência. Contra isso, ele propunha o exercício da dúvida.

Dizer “talvez”, “às vezes”, “hoje” ou “nesta situação” é abrir espaço para a diversidade de experiências. É escutar antes de concluir. É observar antes de julgar. É perguntar antes de acusar. Essa atitude favorece o diálogo verdadeiro, aquele que não pretende vencer, mas compreender.

Flexibilidade não significa falta de posicionamento, mas disposição para revisar as próprias certezas à luz da escuta e da experiência. A ética que Saramago nos propõe é a do cuidado: com a linguagem, com o outro, com a complexidade do mundo.

Aplicações cotidianas: como essa frase muda nossa forma de falar (e de viver)

No cotidiano, “sempre” e “nunca” aparecem de forma quase automática. Muitas vezes, usamos essas palavras por impulso, como desabafo, sem perceber o impacto que elas geram. Mas quando prestamos atenção, percebemos o quanto elas contribuem para tensões, mágoas e mal-entendidos.

Em relacionamentos íntimos, por exemplo, frases como “você nunca me escuta” ou “você sempre esquece” funcionam como acusações — mesmo que o objetivo seja apenas expressar frustração. Essas palavras tendem a gerar defensividade, fechamento, ressentimento. Pior: elas bloqueiam a possibilidade de mudança, porque congelam o outro em um papel negativo.

A comunicação não-violenta, tão discutida hoje, parte do mesmo princípio que Saramago propõe: falar a partir da experiência concreta, observável, e não de julgamentos generalizantes. Dizer “ontem me senti sozinho quando você não perguntou como eu estava” é muito mais produtivo do que afirmar “você nunca se importa comigo”. A primeira frase convida ao diálogo; a segunda, ao conflito.

No ambiente de trabalho, no convívio social, nas redes sociais — cada espaço exige responsabilidade com o que falamos. Palavras são atos. E atos constroem mundos.

Conclusão: Saramago e a coragem de falar com consciência

A frase “Há duas palavras que não se podem usar: uma é sempre, outra é nunca” revela a sensibilidade filosófica e literária de José Saramago. Ao criticar o uso dessas palavras, ele nos convoca a um exercício de linguagem mais atento, ético e humano.

Num tempo em que o discurso se tornou cada vez mais polarizado, apressado e agressivo, a proposta de Saramago é revolucionária: voltar à escuta, à observação, à palavra justa. Evitar os extremos verbais é também evitar os extremos emocionais. É abrir espaço para relações mais honestas, mais gentis, mais verdadeiras.

Falar bem, para Saramago, não é seguir regras gramaticais. É pensar, sentir, refletir antes de emitir juízos. É tratar a linguagem como extensão da alma. É praticar o cuidado com aquilo que mais nos torna humanos: a capacidade de nomear o mundo — e de transformá-lo com o que dizemos.

Nas entrelinhas, Saramago nos oferece uma filosofia da palavra viva: aquela que constrói, que acolhe, que permite nuance. Porque, no fundo, como ele nos ensinou em tantos livros e gestos, a linguagem não é apenas comunicação. É também uma forma de amor.

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